sexta-feira, 9 de abril de 2010

O audiovisual contemporâneo e a criação com imagens de arquivo


Este é um artigo bem legal, li para uma aula de projeto de documentário


O audiovisual contemporâneo e a criação com imagens de arquivo
Consuelo Lins (ECO/UFRJ) e Luiz Augusto Rezende (NUTES/UFRJ)
(apresentado no 13° Encontro Socine – ECA/USP, 2009)

Resumo

A retomada de imagens de arquivos – públicos, privados, pessoais, televisivos, anônimos – é um procedimento cada vez mais recorrente na produção artística contemporânea, das artes visuais aos produtos midiáticos, especialmente no documentário. Nossa proposta é discutir diferentes modos de apropriação de materiais audiovisuais já formados e seus efeitos estéticos e políticos, partindo do princípio que a imagem de arquivo é sempre algo indecifrável e sem sentido enquanto não for colocada em relação com outros elementos – outras imagens e temporalidades, outros textos e depoimentos. Trata-se, retomando o pensamento de G. Didi-Huberman, de aceitar a natureza precária, lacunar e enigmática de uma imagem. A imagem não é tudo, diz o autor, mas está longe de ser nada; e apesar de todas as insuficiências, é possível arrancar dela aprendizado, trabalhando-a na montagem.


“You don’t have to search for new images, ones never seen before, but you do have to utilise the existing ones in such a way that they become new” (“não é preciso buscar novas imagens, imagens nunca antes vistas, mas utilizar as imagens existentes de uma forma que elas se tornem novas”). Essa frase do cineasta alemão Harun Farocki (apud LEIGHTON, 2008, p. 35.) expressa um gesto artístico cada vez mais freqüente nas práticas audiovisuais contemporâneas: a retomada de imagens já existentes, extraídas de arquivos públicos ou privados, em filmes, vídeos e instalações, com efeitos e funções variadosi. Dentre os filmes realizados por Farocki está Videogramas de uma Revolução (1992), com co-direção com Andrei Ujica, montado com imagens realizadas por amadores durante os acontecimentos que levaram à queda do ditador romeno Nicolae Ceausescu em 1989, associadas a seqüências captadas pelos cinegrafistas da televisão estatal. A partir desse material, o cineasta produziu um filme revelador não apenas do final do regime comunista e da execução do patético casal Ceaucescu, mas especialmente da decomposição generalizada das relações sociais provocada por décadas de censura, violência, autoritarismo, mediocridade cultural. O que Farocki faz precisamente? Retoma esse material e nos coloca diante de imagens em estado “selvagem” – o que não quer dizer neutras, muito pelo contrário –, não submetidas ao controle daqueles que filmam, impregnadas das condições do momento, repletas de tensões, contradições e de corpos que hesitam e atuam em diferentes direções. Com isso, mostra a impossibilidade de uma narração homogênea dessa revolução “em imagens”, sem heróis nem romantismos, distante de qualquer utopia.
O gesto de Farocki – e dos artistas contemporâneos que fazem uso desse procedimento – intensifica uma prática artística que, ao menos no campo do cinema, remonta aos anos 20. Prática minoritária que irrigou o cinema, especialmente o documentário, desde então. Os cineastas soviéticos Esther Schub e Dziga Vertov são exemplos célebres: Vertov montou seus filmes, muitos deles pelo menos, a partir de imagens realizadas por outros cinegrafistas; Schub compilou e montou imagens registradas durante a dinastia Romanov, derrubada pela Revolução Russa, entre outros filmes. Em finais dos anos 50, os cineastas franceses Alain Resnais e Chris Marker renovaram essa prática, colocando em uma mesma mesa de montagem imagens de arquivos, imagens realizadas por terceiros e imagens realizadas por eles mesmos. O cineasta experimental americano Jonas Mekas reaproveitou em seus filmes-diários, montados a partir de meados dos anos 60, seus arquivos pessoais que datam da sua chegada a Nova York, no final dos anos 40. Em 1972, Orson Welles dirige Verdades e Mentiras, um filme-manifesto sobre a montagem e as potencialidades do uso de imagens já feitas. Um ano depois, Guy Debord realiza, em A sociedade do espetáculo, um “desvio” de diferentes filmes da história do cinema.
É interessante notar como cineastas e artistas visuais das décadas de 60 e 70 possuíam, em muitos momentos, discursos antagônicos e mesmo hostis entre si, embora tivessem práticas artísticas bastante semelhantes. O fato de um artista retomar por conta própria imagens que já possuem significação e identidade e dotá-las de significação e identidade novas é, segundo o crítico americano Arthur Danto, a maior contribuição que os artistas visuais deram à década de 70 (apud ISHAGPOUR, 2001, p. 757).

***

Diante da intensificação dessa prática nos últimos anos, incluindo a produção de trabalhos feitos a partir de imagens anônimas que circulam pela internet e a utilização de imagens de arquivo em programas televisivos, nos parece fundamental discutir certas noções e estabelecer distinções nos diferentes usos dessas imagens. Apropriar-se de imagens alheias comporta efeitos ambíguos e complexos tanto de transformação do que é do outro – questões e operações a que se submetem as imagens – quanto de conformação do próprio gesto apropriador às feições do material “apropriado”. Há um caráter eminentemente “dialógico” na retomada de imagens/sons produzidos por terceiros em outro tempo e espaço. Em moldes semelhantes aos formulados por Bakhtin (1995) ao se referir à forma como retomamos a fala do outro no nosso próprio discurso, o uso de imagens de arquivo é uma operação que nos faz tornar nosso o que é do outro, mas ao mesmo tempo guardar um pouco do outro no que nos é próprio.
Contudo, apenas constatar um dialogismo inerente a essa prática diz pouco sobre as potencialidades estéticas e políticas que ela pode ter. Não podemos esquecer que diferentes formas de reciclar imagens estão presentes por todo lado, dos produtos midiáticos às obras artísticas, e na maior parte dos casos sem qualquer dimensão crítica. O que chama a atenção em certos filmes, a maioria deles ensaístico, é a forma como os autores criam uma distância em relação às imagens – reflexiva, por vezes irônica –, que desnaturaliza o que estamos vendo e revela a “natureza” imagética da imagem. São obras que colocam, de imediato, o real como imagem e partem do princípio de que o arquivamento não é fruto de técnicas neutras, mas de procedimentos que tanto produzem quanto registram o evento, como afirma J. Derrida em outro contexto (DERRIDA, 2001, p. 29). Em outras palavras, as imagens de arquivo, nesses ensaios fílmicos, não são exibidas como “arquivamento do real”, nem documento do que existiu, mas como imagens captadas em certas circunstâncias sociais, técnicas, políticas, atravessadas portanto por contextos específicos, que fizeram com que elas fossem arquivadas e chegassem até nós de uma certa maneira. Ao mesmo tempo, alguns elementos da imagem só se tornam visíveis em determinadas épocas, por isso o arquivo é sempre algo em construção, intrinsicamente ligado ao presente.
De certo modo, essa forma de trabalhar com imagens já existentes vai ao encontro da definição de “imagem-arquivo” do historiador da arte francês G. Didi-Huberman: uma imagem indecifrável e sem sentido enquanto não for trabalhada na montagem. Fotografias ou imagens em movimento dizem muito pouco antes de serem montadas, antes de serem colocadas em relação com outros elementos – outras imagens e temporalidades, outros textos e depoimentos. Para Didi-Huberman, ou se pede demais da imagem, que ela represente o Todo, a verdade inteira, o horror dos campos, por exemplo, o que é impossível – elas serão sempre inexatas, inadequadas, lacunares; ou se pede muito pouco, se desqualifica, afirmando que a imagem não passa de simulacro, excluída portanto do campo da história e do conhecimento.
O autor desenvolve essas idéias em Images malgré tout [Imagens apesar de tudo] (2003), um texto de intervenção em um debate que teve como centro quatro fotos de um campo de concentração (Auschwitz-Birkenau) tiradas em agosto de 1944 por um dos membros do Sonderkommando – comando formado por judeus arregimentados pelos nazistas para o trabalho de incineração dos prisioneiros dos campos de extermínio. A primeira parte do livro é um texto de apresentação dessas fotos propriamente, incluído no catálogo da exposição que aconteceu em Paris no início dos anos 2000. A segunda parte responde a inúmeras acusações que sofreu Didi-Huberman por ter dado divulgação a essas fotos, lideradas pelo documentarista C. Lanzmann, diretor do documentário Shoah (1985). Lanzmann contestou violentamente o uso dessas fotos e considerou uma infâmia moral a exposição. Para o cineasta, imagens do extermínio e qualquer imagem dos campos, ao contrário de evocar o horror, o banaliza, intensificando o que a máquina midiática de produção e difusão de imagens não cessa de fazer. Shoah é um documentário de 9 horas que não utiliza nenhuma imagem de arquivo. Lanzmann chegou a afirmar que se tivesse encontrado essas fotos teria desaparecido com elas, já que jamais poderiam representar o irrepresentável.
Didi Huberman realiza nesse texto uma vigorosa defesa das imagens “malgré tout” (apesar de tudo), contra o que ele chama de “estética negativa” que entende a Shoah como uma “destruição sem ruína” ou um “acontecimento sem olhar possível”. Auschwitz, diz o autor, é uma realidade, fruto de um delírio político-racial, e não um inferno. Uma realidade que temos o dever de imaginar, de pensar, de interrogar, apesar de suas lacunas e da impossibilidade de tudo dizer.
W. Benjamin, J, Rancière, J. L. Godard, G. Agamben, M. Blanchot são convocados para uma argumentação em favor da montagem como princípio básico de relação com as imagens do mundo. Contudo, não se deve confundir o trabalho de montagem com manipulação, diz o autor. Montagem não é fusão, assimilação ou destruição dos elementos que constituem as imagens. Trata-se de montar mostrando as diferenças e ligações com o que nos cerca.
Didi-Huberman critica Lanzmann sem deixar de reconhecer a força do documentário Shoah. Para ele, porém, o rigor estético do filme tornou-se dogmatismo no discurso do cineasta. Contra a alegação de que o extermínio dos judeus é uma “destruição sem ruína”, o historiador insiste na exposição dessas quatro fotos, justamente por meio da noção de montagem. M. Foucault e M. de Certeau chamam atenção nos seus trabalhos sobre a questão do arquivo, interrogam a relação “positivista” que os historiadores têm com esse tipo de documento, negando a esse material um “reflexo do real”. Daí a negar todo o valor dos arquivos há um exagero e uma deturpação dessa perspectiva tão inovadora, diz Didi-Huberman: nem excesso de positivismo, nem excesso de ceticismo.
As imagens são frágeis, impuras, revelam coisas visíveis misturadas a coisas confusas, coisas que enganam a coisas reveladoras – são, de fato, insuficientes para falar do real, reafirma o autor. Há que se partir do princípio de que “todo ato de imagem é extraído da impossibilidade de descrever o realii” (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 156). Contudo, é justamente com todas as precariedades, a partir de todas as lacunas, apesar de todos os riscos, que é possível trabalhar com elas. A imagem, para Didi-Huberman, não é tudo, mas está longe de ser nada; e apesar de todas as insuficiências, é possível arrancar dela aprendizado, trabalhando-a na montagem. Fazer ver este caráter ao mesmo tempo incompleto e potente das imagens parece ser uma das contribuições de uma parte do cinema que trabalha com imagens de arquivo.

***

Reutilizar uma imagem, congelá-la na tela, deixá-la mais lenta, fazê-la voltar ou acelerar, dissociá-la do som são procedimentos utilizados pelos diretores para imprimir uma distância entre a imagem e o mundo, entre a imagem e o espectador. Gestos que fazem com que o espectador experimente as imagens como um dado a ser trabalhado, a ser compreendido, a ser relacionado com outros tempos, outras imagens, outras histórias e memórias e não como ilustração de um real pré-existente.
Entre estes dois pólos – criar uma distância em relação às imagens ou tentar ilustrar um real pré-existente –, transitam as práticas de apropriação de imagens de arquivo. Duas lógicas principais parecem regular este trânsito: a primeira parte da demanda, do discurso ou desejo de expressão de um autor, e daí se dirige aos arquivos. A outra parte dos próprios arquivos, do conhecimento de uma fonte ou da consideração da raridade, unicidade ou particularidade de uma imagem quando colocada à luz de uma idéia, produzindo um novo discurso, forma de expressão ou projeto.
A primeira lógica marca a história do documentário clássico e continua presente nas práticas do telejornalismo, onde os centros de documentação atendem às pautas de produção diárias buscando imagens para ilustrar textos. Não por acaso esses acervos são frequentemente chamados “bancos de imagem”, por “abastecerem” as matérias. Já a segunda lógica é menos facilmente localizável, se dissemina por práticas que consideram as imagens de arquivos como acontecimentos entre acontecimentos (FOUCAULT, 2004), únicos em si mesmos, e não signos de outra coisa.
Na primeira lógica, a imagem buscada pode ser encontrada em um amplo espectro de variedades. Há muitas imagens que podem “servir” a um mesmo propósito e, assim, as imagens se tornam intercambiáveis entre si, produzindo o que Comolli chama de “mixagem de imagens” (em lugar de montagem), ou seja, a mistura de imagens de fontes diversas e díspares, sem referência às origens ou à história dessas imagens, onde “tempos, lugares e circunstâncias são misturados geralmente em resposta à lógica de um projeto unificador” (LINDEPERG & COMOLLI, 2008, p. 21). O efeito de tal prática, que revela um certo desconhecimento e uma falta de interesse pela imagem, é o desaparecimento do seu valor, das suas particularidades e da sua historicidade, em que “a história das imagens se apaga no gesto do montador” (LINDEPERG & COMOLLI, 2008, p. 25). As especificidades das imagens tendem a ser apagadas pelos propósitos da apropriação, e a repetição ad infinitum de imagens retiradas dos mesmos “bancos” as faz perder muito de sua potência original, tornando-as sem história, disponíveis para qualquer uso.
Na segunda lógica, a disponibilidade de uma imagem (ou de uma série de imagens) condiciona uma apropriação, promove e dá lugar a um desejo de expressão, regula uma organização audiovisual. A ênfase recai, então, sobre as particularidades das imagens, sobre um trabalho de compreensão e de interpretação de elementos não escolhidos ou não reconhecidos que permanecem “em espera” nas imagens (LINDEPERG & COMOLLI, 2008, p. 30) e que dão a estas seu caráter de acontecimento. Estes elementos, que escapam dos objetivos e do controle dos que as produziram, surgem porque um registro audiovisual frequentemente precede a sua compreensão mais profunda. É em função da existência desses elementos que o realizador pode criar relações entre idéias e identificar latências nas imagens de arquivo que podem “torná-las novas”, como sugere Farocki. O gesto proposto por Farocki é, portanto, sempre dependente do olhar que o artista lança sobre o material e das perguntas que ele lhe coloca.

***

Tornar nova uma imagem é, então, descobrir elementos latentes, que não eram “visíveis” à época de sua captação. Em Le tombeau d’Alexandre (1993), Chris Marker identifica em uma imagem do tempo do czarismo um traço da opressão desse regime sobre o povo russoiii. Na procissão comemorativa dos 300 anos da dinastia Romanov, um militar dirige-se à multidão, batendo na própria testa. “Que faz ele?”, pergunta Marker. “Ordena a multidão tirar o chapéu. Não se fica com a cabeça coberta na passagem dos nobres”. Latente no momento de sua captação, esse elemento emerge no filme de Marker apontando um sentido imprevisto da imagem. O comentário, feito em forma de carta dirigida ao amigo cineasta Alexandre Medvedkine, introduz essa imagem em câmera lenta, chamando a atenção para o gesto do militar. A imagem retorna pouco depois destacando esse gesto. O narrador observa:

Já que o esporte da moda é voltar no tempo para encontrar culpados de tantos crimes e infelicidade derramados em um século sobre a Rússia, gostaria que não fosse esquecido - antes de Stalin, antes de Lênin - esse cara gordo que mandava o povo saudar os ricos.

A imagem, no final da seqüência, se congela por alguns segundos. O que Marker restaura aqui é uma dimensão do passado que precisa ser resgatada para não se perder de vista o que G. Deleuze chama de “devir revolucionário” dos indivíduos em um determinado momento histórico. Não podemos confundir esse devir com “o futuro das revoluções” - “não são as mesmas pessoas nos dois casos” (DELEUZE, 1990, p. 231). A seu modo, Marker nos diz algo semelhante: não podemos esquecer essa imagem, não podemos desqualificar o desejo de liberação em função dos horrores ocorridos na União Soviética. Portanto, essa imagem precisa ser retomada, remontada, olhada de perto, relida no que ela ainda pode nos dar a ler, de forma a permitir uma reconexão com o que se pensou ser possível naquele momento, mas que foi derrotado.
Repetição e congelamento da imagem: dois procedimentos que são centrais para a montagem do cinema, segundo G. Agamben. Para o filósofo italiano, não há mais necessidade de filmar, “just to repeat and stop” [apenas repetir e parar], uma vez que o cinema de agora é feito com base nas imagens do próprio cinema (AGAMBEN, 2008, p. 330). Agamben faz essa afirmação ao destacar esses procedimentos nos filmes de G. Debord. Inspirado na definição do poema de Paul Valéry – “a prolonged hesitation between sound and meaning” [“uma hesitação prolongada entre o som e o significado”], o autor identifica nesses gestos artísticos uma “hesitação” entre a imagem e o sentido que não se traduz numa simples pausa: trata-se de uma potência de interrupção e ruptura, que trabalha a imagem propriamente, retirando-a do fluxo narrativo e forçando o espectador a pensar de outras maneiras.
Tornar nova uma imagem existente é também rediscuti-la, inseri-la em um contexto histórico diferente, mudar a direção de seu discurso, confrontá-la com outras perspectivas. Em Mato eles? (1982), Sérgio Bianchi apropria-se do documentário antropológico Os xetás da serra dos dourados, fruto das expedições da Universidade Federal do Paraná na década de 1950, escrito e dirigido pelo prof. José Loureiro Fernandes. O documentário é descritivo: mostra os índios Xetá em atividades cotidianas e em seu ambiente, o que é acompanhado por uma narração clássica e acadêmica, bem diferente de Mato Eles?. Bianchi, no entanto, conserva em condições muito próximas das originais a seqüência do filme de que se apropria, mantendo a narração e até mesmo a apresentação de parte dos créditos. Não é uma seqüência longa, mas é representativa do discurso antropológico da época e do filme. Além disso, Bianchi o mantém desafiadoramente quase que “em separado”, em uma moldura dentro do filme, como um filme dentro do filme, aparentemente independente, um “corpo estranho” dentro de Mato Eles?. Num primeiro momento, o que parece justificar o gesto de Bianchi ao se apropriar deste material – apresentação em bloco, conservação, moldura, separação – é o cuidado com a identificação daquelas imagens e sons e a indicação da sua origem, da sua localização histórica. Mas isto não é principalmente sinal de interesse ou conhecimento sobre a imagem. Serve mais profundamente a uma estratégia: oferecer à apreciação do espectador o “caráter típico” desse material, as características históricas e estéticas de um discurso antropológico datado, indiferente, a que o diretor se coloca implicitamente em oposição. O efeito produzido – forçar o espectador a uma tomada de posição – é realçado pela posição do filme de arquivo no filme de Bianchi: ele se encontra entre dois trechos da exposição de um pesquisador sobre as etnias que habitam a região oeste do Paraná, em que este discute a sobrevivência dos índios (ou melhor, o seu extermínio). O pesquisador lança mão de números inexpressivos e informações detalhadas e pessoais dos poucos índios que restaram. O filme não precisa dizer mais nada.
O filme de Bianchi é um marco de uma linha minoritária do cinema brasileiro que retoma imagens já existentes de forma crítica, que tem também como expoentes os “anti-documentários” de Arthur Omar dos anos 70, Cabra Marcado para morrer (1964/1984), de Eduardo Coutinho e Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado. Na produção mais recente, os filmes de Andréa Tonacci (Serras da Desordem, 2007), João Salles (Santiago, 2007), Joel Pizzini (500 almas, 2007) e Erick Rocha (Rocha que voa, 2002), exibem a vitalidade dessa prática criativa, feita da apropriação de materiais audiovisuais pré-formados, associados em alguns casos às imagens filmadas pelos próprios realizadores. No campo das artes plásticas, o trabalho de Rosangela Rennó se destaca particularmente em Arquivo Universal, em que a artista seleciona e organiza imagens anônimas já existentes, partindo do princípio de que o arquivo é algo em construção, que as imagens são sempre atravessadas por diferentes questões, e que é necessário montá-las de diferentes formas para complexificar nossa apreensão do mundo.

***

As obras e artistas aqui tratados apontam tanto para as modalidades das práticas com imagens de arquivo, em diversos campos, quanto para o pensamento que essas práticas inspiram. Nosso objetivo foi indicar alguns caminhos para análises que se ocupem da diversidade dessas práticas e que nos permitam formular um pensamento próprio ao uso de arquivos na produção audiovisual contemporânea. Como acontecimento criado por um gesto organizador, que confere uma ordem a um conjunto mais ou menos heterogêneo de documentos audiovisuais, o arquivo é uma “imagem em ato”, uma vez que está aberto à história, ao mundo e a outros gestos que o modifiquem, reconfigurem e ressignifiquem. Pensar o uso dos arquivos significa pensar a imagem como ato e não como coisa (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 143) ou representação. Neste sentido, as análises aqui apresentadas permitem ver na criação audiovisual com imagens de arquivo as potencialidades estéticas e políticas desta prática.



1- O termo “found footage” é muito usado pela crítica americana, que faz em alguns momentos distinções da noção “imagens de arquivo”. “Archival footage” são imagens históricas de instituições públicas; “found footage” são aquelas provenientes de coleções privadas, estoques comerciais, agências de filmagem, internet – imagens que não possuem um valor histórico determinado.

2-Tradução nossa da frase “tout acte d’image s’arrache à l’impossible description d’un réel”.

3- Já utilizada por Esther Schub no filme A queda da dinastia Romanov (1927).

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. “Difference and Repetition: on Guy Debord’s films”. In LEIGHTON, Tanya (ed). Art and the moving image, London: Tate publishing/Afterall, 2008, p. 328-333.
BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud & Yara Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995.
DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
DIDI-HUBERMAN, G. Images malgré tout. Paris: Les Editions de Minuit, 2003.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
ISHAGPOUR, Youssef. Orson Welles. Paris: La difference, 2001.
LEIGHTON, Tanya. “Introduction”. In LEIGHTON, Tanya (ed). Art and the moving image. London: Tate publishing/Afterall, 2008.
LINDEPERG, Sylvie & COMOLLI, Jean-Louis. “Images d’archive: l’emboîtement des regards” (entretien). Images Documentaires, Paris, nº 63 – Regards sur les archives, 2008, p.11-39.


Consuelo Lins é documentarista e professora da UFRJ. Doutora e pós-doutora pela Univ. de Paris III, com pesquisas sobre a produção documental. Publicou O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo (2ª ed. 2007) e Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo (2008), este último em parceria com Cláudia Mesquita, ambos pela editora Jorge Zahar.
Luiz Augusto Rezende é professor e pesquisador do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde da UFRJ. Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ, tem desenvolvido, orientado e publicado pesquisas sobre documentário e audiovisual educativo.


Jordane.

3 comentários:

Anônimo disse...

Legal Jordane.

Entretanto o texto é muito longo. Tente colocar post mais curtos e explicativos.
Fale sobre suas postagens e apenas cite o Link, assim, se o leitor se interessar sobre o assunto ele vai pra lá.
Fica mais dinâmico é a leitura mais fácil.

Beleza. Abração

Anônimo disse...

Obrigado pelo seu post, bom para isso serve o "resumo", que resume, fala em poucas palavras o que o artigo abordará. Assim lendo o resumo o leitor tem uma prévia e portanto vai saber o que o artigo esta tratando.
No entanto posso tentar sanar suas dúvidas caso voçe não entendeu o resumo.
Bom normalmente meus posts são bem pequenos e no caso dos artigos postei integralmente porque na verdade são textos que - até onde eu sei -, não estão em nenhum link na internet.
Vou procurar dar um parecer meu em eventuais posts, no entanto não dar um parecer pode ser bom também, porque assim vejo que o leitor pode ter suas próprias conclusões sem sofrer influência minha.
Os bohemios agradeçem seu comentário e talvez nos próximos comentários procure se identificar - não é via de regra -, como em um bar as vezes voçe fala com pessoas que não conheçe. Enfim seja um seguidor dos bohemios afinal queremos sempre nossa "mesa de bar" cheia
abraço Jordane.

dominique disse...

é tao bom quando se esta procurando um texto e acha ele na íntegra. parabens! nao é catálogo e nem blog de fofocas culturais......

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